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Caminho de Santiago de Compostela, trecho português (254 Km)
Meu caminho, por Vívian Lemos
Trecho português realizado a partir de Porto (254 Km)
“Ser peregrino é acreditar na realização dos sonhos…
Encontrar os limites…e superá-los…
Dar um passo de cada vez…” Beatriz de Abreu
Difícil começar a escrever sobre algo tão profundo que aconteceu comigo, mas acho importante fazê-lo até para não esquecer os detalhes que o tempo, invariavelmente, vai apagando. O caminho começou três anos antes de realizá-lo de fato e não parou até hoje… Depois de muito tempo completamente sedentária, resolvi começar a correr,aqui em BH. Da corrida, veio a natação e da natação foi um pulo para começar a pedalar. Grandes amigos me ajudaram a conhecer o mundo do esporte que, até então, não fazia a menor ideia de como realizar os treinos. No entanto, não tinha tempo o suficiente para todas as modalidades e as provas foram me deixando frustrada por não conseguir um desempenho razoável. Até que, as corridas em trilha me encantaram. Fui descobrindo em mim mesma a coragem para correr nelas completamente sozinha. Nesta época, já havia lido alguma coisa sobre Caminho de Santiago e vi que era algo possível de ser realizado por mim, até então, caminhando. As provas de montanha e de aventura não me chamavam tanto a atenção quanto percorrer um trecho longo por vários dias do jeito que mais adorava! Procurei uma assessoria esportiva, que topasse treinar-me para este desafio pessoal que aos poucos fui desenhando, juntamente com todos os outros desafios que apareceram para mim neste mesmo período. Um ano antes, defini qual trecho seria possível realizar. Enquanto me preparava nos treinos, fui buscando mapas da região, conhecendo a Associação de Peregrinos do Brasil e fazendo amigos também peregrinos que me questionavam o real motivo de realizar, ao invés de caminhando, correndo os 254 km.
Sentia-me pouco preparada para tamanha quilometragem. Um mês antes recebi minha vieira e a credencial na Associação de Peregrinos… meu coração quase parou tamanha emoção..Agora sim! Eu e minha mochila de 7 kg.
Saí dia 04/10/2013 do Brasil, tinha apenas 8 dias para ir, correr e voltar para os filhos e para o trabalho. Cheguei a Porto dia 05/10 bem cedo e, mesmo muito cansada, resolvi fazer uma caminhada pela cidade, comprar um guia e conhecer o início do caminho.
A cidade do Porto é linda e me sentia em casa. População muito agradável e receptiva. Buscava informações para o dia seguinte que já estava determinada em começar “meu caminho”. Saí do Brasil apenas com meu mapa de altimetrias e as paradas que iria fazer em seis dias. Pelas poucas referências que tinha os primeiros 20 km seriam pela rodovia até chegar às trilhas do caminho propriamente ditas. Decidi, então, pegar o metrô até Povoa de Vazim e aí sim iniciar o trajeto. Preparei a mochila na noite anterior com o que precisaria por seis dias: duas peças de roupas, 2 pares de meias, roupas íntimas, kit com material para cuidar dos pés (micropore, tesoura estéril, agulha, iodo, antiinflamatório, vaselina, hidratante, corticoide e material de higiene, inclusive sabão para lavar roupa), bloco de anotações,carregadores de dois GPS e celular.
1º dia (Porto- Barcelos 60 km): Pela manhã, um delicioso café da manhã sem muita pressa. Peguei o metrô e embarquei para Povoa de Vazim 20 estações à frente. Lá pela sexta, entrou um senhor que identifiquei como peregrino pela mesma vieira que eu tinha fixada na minha mochila. Esperei mais duas estações e resolvi perguntar se faria o Caminho de Santiago português. Não só me respondeu como me deu todo caminho com novas dicas e paradas que desconhecia. Deveria parar em Vila do Conde e aí sim pegar as “setas amarelas”. Agradeci… ele desceu…e eu agradeci a Deus pelo anjo que me mandou… Vila do Conde é apenas uma igreja na beira da estação de metrô. Procurei as setas e segui em frente até São Pedro dos Rates. Correndo como proposto, a mochila começou a fazer parte do meu corpo. Sentia dores nos ombros, mas sabia que seria um período de adaptação. Parei para um breve almoço com outros peregrinos que me questionavam o tempo todo porque seguia correndo… ”não pode… não dá tempo de pensar”, diziam com as experiências de mais dois caminhos realizados anteriormente. Bem, mas meu tempo era muito pouco e o caminho ia se revelando.
O trecho português é bem sinalizado e ora em trilhas, ora em vinhedos com parreiras que fazem sombras de descanso para os peregrinos e suas uvas como delicioso alimento. Este dia totalizei 60k até a cidade de Barcelos. Como minha opção foi realizar o caminho sozinha, preferi utilizar hostels ou pousadas aos albergues de peregrinos. Precisava dormir, então procurava sempre no início do caminho do dia seguinte para não me perder. Como peregrina, sempre tinha um desconto e tratada com muito respeito. Tomei um banho, lavei roupa e procurei um lugar para uma refeição. Tudo muito em conta, afinal estava começando a jornada. Tinha uma rotina com os pés antes de dormir… sabia que eles sofreriam no final.
2º dia (Barcelos- Ponte de Lima 37 km): O café da manhã era a refeição que eu tinha certeza ter de forma completa. Logo depois, saí seguindo as setas amarelas rumo Ponte de Lima. Foram 37 km percorridos neste dia. Correndo grande parte, a mochila se fez presente deixando meus ombros muito doloridos. O clima quente como o nosso, lembrava-me os meus treinos em um enorme calor. Peguei meu primeiro trecho de subida entre as ruas de uma cidade chamada Portela e logo depois descida… Cidades lindas com pontos de parada para uma reflexão e agradecimento pelos olhos! Não queria almoçar… Fiz um lanche com os amigos que pelo caminho apareciam. O mais interessante é que a língua não é um empecilho… no caminho ela é única. As bolhas apareceram e tive que parar em Ponte de Lima mesmo. Escolhi a Pousada da Juventude próxima ao Rio Lima. Seguindo a rotina de cuidados e fui dar uma volta… um espetáculo de paisagem e beleza na cidade mais antiga de Portugal. Jantei a beirada do Rio Lima e me permiti tomar uma taça de vinho prometendo a mim mesma voltar naquele lugar com mais tempo.
3º dia (Ponte de Lima – Valença 38 km): Parti cedo para Valença. Seriam 38km até a última cidade no território português. Trecho muito íngreme até Portela Grande, mas que ficaria na minha memória para sempre como aquele que define o “ser peregrino”. Subida em meio uma floresta densa e muitas pedras… enormes! Pernas fortes até o alto onde encontrei um monumento aos peregrinos formado por pedras deixadas ali e vários pertences como prova do desapego. Deixei o meu e desci rapidamente porque o trecho ainda era grande sem uma parada longa para almoçar. Lanchei com dois amigos e continuei… as bolhas doíam demais mesmo cuidando e retirando a pele, elas formavam novamente. Procurei superar pensando no caminho como era riquíssimo. Cheguei em Valença anoitecendo. Não tive dificuldades em achar um lugar para dormir; então, pude desfrutar de um jantar em castelo encantador por onde passaria no dia seguinte seguindo as setas amarelas.
4º dia (Valença – Redondela 32 km): Levantei mais cedo que consegui e estava frio… ventando. Aproveitei para caminhar e não correr. Os pés doíam e começaram a inchar. Passei a tomar os anti-inflamatórios que tinha e mantive o ritmo até Redondela (32km). Durante o percurso, percebi que as setas foram substituídas pelas conchas amarelas com a abertura voltada para o caminho. Trecho com mais asfalto e sem as trilhas que tanto me fazia bem. Parei várias vezes, chorei mais ainda de dor…pensei em parar. Foi o dia onde não conseguia manter meu foco e minha vontade de ir mais longe. Fui acompanhada por um peregrino espanhol que notou minha dificuldade e tentou me distrair…em vão! Cheguei em Redondela e me sentia muito mal. Cidade hostil da Espanha…cinza mesmo. Um lugar para dormir qualquer que fosse; nem lavar roupas eu consegui. Joguei fora alguma coisa e pedi a Deus que me tirasse daquela cidade o mais rápido que conseguisse.
5º dia (Redondela – Calda de Reis 41km): Às 5 horas estava pronta. Tomei apenas água, coloquei minha lanterna na cabeça e fui embora correndo pela cidade a fora. Um medo enorme me bateu e enfrentei a escuridão para chegar o mais rápido na luz do sol. Amanheci no alto de um bosque lindíssimo e via Rio de Vigo lá embaixo… agradeci pela força que tive e meus olhos pela beleza…esqueci a dor e desci pela trilha sem dó dos pés. Dos 41 km até Caldas de Reis, só consegui correr os primeiros 21 km da manhã. Parei para tentar comer alguma coisa melhor e deixar a dor dos pés passar. Em Padron, achei um restaurante espanhol típico da Galízia, Mesa de Pedra. O espanhol que me atendeu falava rápido demais e não entendia que queria um suco de limão e um sanduíche. Achou um absurdo eu não experimentar a cerveja da Galízia! Ri muito com outros peregrinos que ali estavam e esqueci-me do que incomodava. Segui caminhando e refletindo muito… Cheguei à noite e peguei o primeiro hotel que achei no caminho. Precisava comer melhor e descansar cedo. Na manhã seguinte, seria meus últimos 46 km até Santiago de Compostela.
6º dia (Calda de Reis – Santiago de Compostela 46km): Dormi muito mal pelas dores nos pés e pela ansiedade de ser o último dia. Queria aproveitar o máximo do caminho que começava a ficar mais movimentado de peregrinos à medida que aproximava de Santiago. Percebi que uma das bolhas havia infeccionado… não tinha o que fazer a não ser tomar os remédios que tinha e enfiar os pés no tênis. Foi um dia marcado pela superação o tempo todo. Comecei bem cedo e procurei caminhar rápido até esquentar um pouco. Trecho pelas rodovias a maior parte. Lembrava-me de um grande amigo no Brasil também peregrino e procurava ter ânimo! Procurei me distrair com os peregrinos conhecidos que já me conheciam pela corredora do caminho. Tudo em vão pela imensa dor que agora chegava no tornozelo. Cheguei aos últimos 10 km às 17horas e encontrei um senhor com um cajado que me questionou se iria chegar a Santiago ainda naquele dia. Alertou-me que teria somente subida! Falei que só o cajado, então, para me ajudar e ele disse em um espanhol difícil de entender que fizesse o meu com o que tinha na natureza. É assim, o fiz…e foi o que me ajudou a chegar depois de 3 horas arrastando. Cheguei a Santiago às 20:30h…terminava a missa dos peregrinos e não acreditava no que tinha alcançado. Recebi minhas bênçãos… entreguei meu coração e resgatei minha alma após 254 km. Depois de dormir por 8 horas sem mudar de lado, levantei para o café. Fazia muito frio em Santiago com um vento de doer! Fui encontrar com os peregrinos que vinham de outros caminhos na praça central da Catedral e pegar a compostela. Esta é recebida em um setor ao lado da catedral depois de ser conferida a credencial.
Durante o percurso, todo peregrino deve carimbar sua credencial nos estabelecimentos sendo que no território português o mínimo é de um carimbo por dia e no território espanhol dois. Somente assim, é possível receber o certificado que é belíssimo! Retornei ao hotel, peguei a mochila e voltei de ônibus para Porto com a certeza que tinha me preparado para o caminho sim, mas que o tempo foi muito pouco para tamanha beleza e luz daquele lugar.
Bom caminho!
Vívian Lemos
e-mail: consultorioplastica@hotmail.com