A montanha tem vida e escolhe quem a sobe. É uma das muitas coisas que pude aprender nesses 3 dias que estive fazendo trekking a 80km da cidade de Mendoza, na Argentina, na região montanhosa chamada de Cordón del Plata.
Comprei 3 dias de passeio guiado com acomodação em refúgio, um albergue com quartos compartidos, chuveiro quente, café e jantar, um luxo pra quem está no meio da montanha. A maioria dos turistas faz passeio de um dia, sem precisar dormir, saem de Mendoza a 700m e em 1h30 chegam ao refúgio a 2600m, nesse caso fazem uma caminhada de mais ou menos 5 horas até chegar a 3300m. No caminho fazemos algumas paradas para tomar água, e no topo da montanha escolhida comemos nosso lanche (almoço). No caminho para chegar aos 3300m já é possível sentir a altitude, a respiração e a digestão fica mais lenta, uma das recomendações era não comer até se empanturrar, outra recomendação, muito importante, era tomar cerca de 4 litros de água por dia. Os guias me alertaram que isso era muito importante para nenhum inconveniente me surpreender na altitude e me obrigar a descer, como dor de cabeça, enjoo, tontura, vômito… Ao imaginar tomar 4 litros num lugar frio, cheguei a pensar que não conseguiria, mas de alguma forma a desidratação é mais rápida e feroz na altitude. Tomei muita água sem sentir que era demais, realmente não sabia nada sobre altitude e se estivesse sem guia poderia me complicar. Segui as recomendações e me sentia muito bem. Meu itinerário era me aclimatar a altitude, subindo montanhas de 3300m durante o dia e dormindo mais abaixo a 2600m para no último dia subir o Cerro San Bernardo a 4200m, que muitos consideram ser a iniciação ao montanhismo.

Subida ao Cerro Arenales, a neblina não deixou ver muito, mas deu pra sentir que é preciso respeitar a montanha. O frio e a chuva podem te pegar a qualquer momento.
Fazia 35° em Mendoza, parecia uma loucura eu ter na mochila várias roupas de frio e chuva, já que raramente chove por aqui, mas aprendi que a montanha tem seu próprio micro clima, enquanto em São Paulo dizemos que você pode passar pelas 4 estações do ano em um dia, na montanha isso pode ocorrer em apenas uma hora, e foi o que aconteceu no meu primeiro dia, vestia calça, camiseta e uma blusa, na minha mochila de trilha levava protetor solar, boné, outra blusa, um corta vento impermeável e o lanche de marcha oferecido por eles. Começamos a caminhar e logo tirei o agasalho ficando só de camiseta, estava suando, a caminhada era morro acima o tempo todo e o guia nos dava um ritmo bem confortável, apesar de uma das 5 pessoas do grupo ficar um pouco mais para trás o tempo todo, quanto mais caminhávamos mais perto chegávamos do local coberto por uma neblina espessa, e de repente entramos na neblina, uma pausa para tomar água e vestir novamente a blusa, em outros poucos minutos uma chuva fina começou a cair, baixando mais a sensação térmica, parei mais uma vez para vestir meu corta vento porque nesse momento a chuva apertou de vez. As pessoas que iam para o passeio de um dia chegavam bem despreparadas para o trekking, sem as roupas necessárias, nesse dia um sueco fazia parte do grupo, e usava tênis de corrida, short e camiseta de algodão, ficou todo molhado e mesmo assim não parecia ter frio, durante as horas de subida nos contou que uma de suas brincadeiras de adolescente era sair da sauna descalço e correr por 5 minutos sobre a neve com seus amigos, pra ver quem era mais corajoso, ou mais idiota, como ele mesmo disse, nada diferente de qualquer adolescente.

Frio e muita neblina não nos deixava ver a paisagem, mas estava no topo, 3500m
Nesse primeiro dia chegamos ao cume do Cerro Arenales, com 3500m, já sem chuva, mas molhados, e alguns com muito frio, apesar do Luciano, nosso guia, nos contar o que havia nos arredores, não conseguíamos ver mais além do que 50m. Comemos nossos lanches, batemos algumas fotos e não mais do que 15 minutos depois começamos a descer, apesar de serem pedras soltas, não escorregávamos e a descida foi tranquila, ao retornar ao refúgio, por volta das 17 horas, o grupo voltou para Mendoza e eu fiquei ali, minha mochila grande com todas as roupas me esperava lá, tomei um banho quente, me agasalhei e fiquei até as 21 horas, horário que escurece no verão, contemplando a natureza e o silêncio, algo impossível em São Paulo, só se podia escutar a água descendo a montanha pelo pequeno riacho, o mesmo riacho que enchia minha garrafinha d’água e me mantinha hidratado. Logo depois jantei um belo prato de spaghetti e um pedaço de rocambole com doce de leite para sobremesa, na montanha o cardápio não é muito variado, mas depois de uma caminhada estava delicioso. Comecei um livro novo e o sono não tardou em chegar, dormi das 23 até as 8:30.
Minha primeira pergunta do dia foi, na altitude se dorme mais do que o normal? A Sole, guia do segundo dia, que também trabalhava no refúgio durante a temporada me disse que normalmente sim, mas que depende do organismo de cada um. Tomei o café da manhã, bem parecido com o nosso, pão, manteiga e café com leite.

Aridez comun, nossa guia Sole comandando o grupo do dia, a direita o Cerro Lomas Blancas e ao centro, encoberto pelas nuvens, o San Bernardo que não pude chegar este ano.
Pouco depois das 9 estava pronto para meu segundo dia de trekking, mas era muito cedo, peguei meu livro, me sentei ao sol e ali fiquei por um bom tempo, a van chegou com o novo grupo e lá pelas 11:30 começamos nossa caminhada, dessa vez seguimos o tempo todo ao lado do riacho, a recomendação era ir ao “banheiro” longe dele para não contaminá-lo.

A sensação vale muito mais que o que se pode ver na foto, 3235m não é tão alto, mas a recompensa do visualvale mais.
Chegamos ao ponto chamado Las Veguitas a 3235m, local onde escaladores acampam para se aclimatar e subir a outros cerros mais altos, dessa vez o tempo ajudou, pudemos comer com calma e apreciar a vista, o ritmo ainda era tão rápido quanto o ritmo do mais lento do grupo e enquanto descíamos uma chuva de granizo nos fazia de alvos, o que é muito comum nessa época do ano, faltando meia hora para chegar ao destino, tivemos que nos abrigar num outro refúgio privado, de um senhor que tocava seu violão e nos fez entrar, parece existir um código na montanha onde um ajuda o outro, não importa o que aconteça. Ficamos por um tempo e assim que a chuva passou voltamos para nosso refúgio, outra vez o grupo foi embora e eu fiquei lá curtindo o sossego. Dolce far niente! Antes do jantar fui surpreendido pela notícia de que não poderia subir até o cume do Cerro San Bernardo por questões climáticas, realmente vi nos dois dias que o clima não estava ajudando, as montanhas mais baixas estavam sempre encobertas por mal tempo e uma das minhas primeiras regras que estipulei antes de começar minha viagem era, fazer tudo o que os guias me mandassem fazer. Perguntei qual seria nossa outra opção e me disseram que chegar ao cume do Lomas Blancas a 3850m seria a alternativa, aceitei prontamente.
Jantei batatas e frango ao forno, na Argentina os pedaços de carne são generosos e realmente senti a digestão mais lenta após o jantar, não dormi feito uma pedra como na noite anterior, mas mesmo assim acordei bem disposto para fazer o trekking, que desta vez seríamos só o guia e eu. Para minha surpresa era uma guia, chamada Yessi, uma chilena casga grossa que corria provas longas de aventura, lá no início desse esporte em 99, quando o mundial ainda se chamava Eco Challenge.
Disse que apesar de fazer o que ela achasse melhor, queria um pouco de desafio físico para esse dia, já que nos outros dois tive que seguir no ritmo do grupo, ela me sugeriu que subíssemos sem muitos desvios e dessa forma ela praticamente traçou uma linha reta e subimos, no caminho enchi a Yessi de perguntas sobre o curso de guias de montanha, é um curso de quase 3 anos com muito aprendizado técnico e prático, onde menos de 30% consegue concluir.

Metade da subida concluída na pista de esqui desativada pela falta de neve dos últimos anos.
A prova final do segundo ano foi subir um cerro de 4500m duas vezes sem parar e não podendo fazer em mais de 7 horas, que não é nada fácil, dos 70 que começaram ela foi uma das 10 primeiras. Além de me explicar tudo com muitos detalhes pude perceber nos 3 dias que os guias eram diferenciados. São praticamente super atletas preparados para qualquer emergência, isso dava uma sensação de tranquilidade durante as caminhadas, me deixando livre apenas para bater fotos e apreciar a paisagem, mas por mais que eu filmasse, ou fotografasse, o que meus olhos podiam ver ficará apenas na minha memória, não dá para colocar numa foto o prazer de estar lá. Subimos dos 2600m até 3850m em 2h30 num ritmo muito bom, apesar da neblina nos últimos 100m aproveitei todo o trajeto, a volta foi mais tranquila, de vez em quando parava para fazer uma foto ou simplesmente parar de olhar o chão e olhar para frente.

A pessoa que alcança o cume deixa uma prova para que a próxima pessoa desça e comprove que subiu. Como não levei nada para deixar em troca, só bati uma foto.
Completamos esse dia em 5h30, estava muito contente por não ter sentido nenhum sintoma da altitude e não estar esgotado, tinha gás para subir mais e encerrei o terceiro dia de trekking com gostinho de quero mais, decidido a encarar um cerro acima dos 4000m. O próximo verão promete!!
Foram realmente 3 dias mágicos que não vou me esquecer. Recomendo a qualquer pessoa que faça caminhadas regularmente, e caso tenha alguma pergunta ou planeje fazer o mesmo, é só me escrever.
Abraço. Enzo Amato.